Atividades econômicas no Contestado antigo
Tropeirismo – Pastoreio - Extrativismo
4. 1 Tropeirismo
Estabelecendo-se no Território do Contestado no início do Século XIX, o homem veio a praticar o tropeirismo nas jornadas que se deslocavam a partir desta zona, em direção aos Campos Gerais do Paraná, à Região Missioneira Gaúcha ou ao Litoral Catarinense, para a compra de mantimentos e utensílios, o que se fazia lá com o produto da venda de muares e bovinos criados nas fazendas.
As tropas xucras percorreram verticalmente o sertão catarinense por quase duzentos anos, conduzindo muares dos pampas aos muladeiros do vale do Paraíba, onde eram comercializados. As jornadas do Sul ao Norte duravam muitos meses, ao ritmo de três léguas (18 km) por dia. Depois das mulas, os tropeiros passaram ao tropeirismo de carga e ao transporte do gado, igualmente recolhido nos campos sulinos e levados para o norte. Nas invernadas, durante os descansos das tropas, a paisagem natural da Região do Contestado reteve muitos tropeiros paulistas e paranaenses, que aqui se estabeleceram. Ao longo dos caminhos, os pousos foram dando origem a currais, fazendas e povoados. A atividade do tropeirismo revelou uma soma de traços culturais que influenciaram a herança cultural do caboclo, influindo nos hábitos alimentares, na indumentária, no lazer, na linguagem, na medicina e, no folclore das histórias, lendas e mitos.
As origens do tropeirismo estão intimamente ligadas às necessidades de transporte de cargas no Sudeste do País, principalmente na ligação da costa com as minas do interior. Quando dos descobrimentos auríferos no Brasil no final do Século XVII e início do XVIII, atraídos pela cobiça, milhares de recém-chegados foram buscar a riqueza no interior. Enquanto cresciam as necessidades por transporte, até que fosse intensificada a importação de negros, os paulistas arrebanhavam e vendiam índios, suprindo a falta de gente para todos os tipos de trabalhos braçais. Os bandeirantes, ao caçar índios Guarani nas reduções jesuíticas do Rio Grande do Sul, encontraram nas savanas sulistas milhões de cabeças de gado bovino, caprino e muar.
Com a abertura da Estrada Real, numerosas manadas xucras, arrebanhadas nas campinas do Prata, passaram a ser encaminhadas para São Paulo e, daí, escoadas para outras direções, principalmente às minas, onde os muares se impuseram como cargueiros ideais devido as suas qualidades inatas para este serviço. Este escoamento veio a criar no Sul do Brasil o intenso tráfego de muares cargueiros em tropas. Tanto, que logo a Estrada Real passou a ser chamada de Estrada das Tropas. E as tropas fizeram surgir o tropeirismo, evidenciando a figura dos seus condutores: os tropeiros.
Se as tropas eram uma só, os tropeiros eram diversos. Havia os comerciantes de muares, que iam pessoalmente às fontes buscar animais e os conduziam para vendê-los nas feiras paulistas; os empregados das fazendas, que dirigiam as manadas vendidas a mando do patrão; os que eram proprietários das manadas e alugavam seus serviços, ou seja, vendiam a capacidade de carga de seus animais. Uma prática dos tropeiros do Extremo-Sul era reservar alguns lotes de animais (de sete a onze bestas cada lote) após a venda da manada, aproveitando-os para o transporte de mercadorias no retorno, para si, para o patrão, ou para atender encomendas de bodegueiros de animais. Em comum, tinham os tropeiros o fato de serem os condutores das tropas.
Ao longo dos caminhos, em locais de terras devolutas previamente escolhidas e geralmente em campo aberto, com pasto suculento e boa aguada, os tropeiros levantavam choças, de pau-a-pique, sem paredes e cobertas de palha, para servirem de “encosto”. Logo, surgiram aqueles que tomavam posse destes locais de paradas, cercavam-nos como campos fechados (potreiros), substituíam a palhoça por um rancho rústico, para alugá-los aos tropeiros e, assim, transformavam os encostos em “pousos”.
Na medida em que os encostos se transformavam em pousos, o local atraia para suas proximidades outro posseiro, concorrente, que também construía seu rancho e fazia surgir novo pouso. A abertura da venda, ou bodega, era o sinal de que aquele pouso prometia ser bom. E aí, vinha um terceiro homem, e os ranchos cresciam, passando a ser chamados estalagens. Encostos, pousos, hospedarias, bodegas, fazendolas, com potreiros ou currais, eram as atrações aos tropeiros viajantes, alguns dos quais vieram a escolher nossa região para nova moradia. Fixando-se, promoviam o aparecimento de núcleos populacionais e, assim, no decorrer do tempo, fizeram surgir as primeiras povoações, mais tarde vilas, no Território do Contestado.
A par de fazendeiros mais antigos que, na condição de sesmeiros, ocuparam desde cedo as terras de campos, no Rio Grande do Sul e mesmo nos Campos de Lages, muitos tropeiros paulistas e paranaenses enriqueceram rapidamente e, no início, sem abandonar a atividade, voltavam aos caminhos, escolhiam as melhores porções de terras-sem-dono nos seus percursos e as requeriam como sesmarias, ou delas se apossavam. Erguiam os currais e logo faziam ali surgir uma estância, geralmente suas futuras moradas. Nos campos e campinas, assim nasciam as fazendas de criação.
Muitos dos ex-tropeiros, agora novos-fazendeiros, seguindo tradições familiares, lançaram-se à criação de gado bovino, oportunizando emprego para outros tipos de homens: o peão, especializado nas lidas campeiras com o gado vacum; o mateiro, profundo conhecedor das matas e explorador dos ervais; e, o roceiro, o plantador de cereais e criador de porcos e galinhas; e, ainda, para novos tropeiros, pois a atividade era mantida. Também, por arrendamento, permitiam o surgimento de mais pousos nos rincões e cantões das propriedades. Para este conjunto todo, acorriam os profissionais de ofícios – seleiros e ferreiros, por exemplo – e a população aumentava.
No final do Século XIX e na entrada dos anos 1900, o tropeirismo enraizou-se em locais cada vez mais internos da Região do Contestado, usando as primeiras estradas abertas pelo pisotear dos animais sobre antigos caminhos, além do percursos da Estrada Real e das veredas das Missões, como nos traçados que se observam em velhos mapas.
O tropeirismo cargueiro foi também importantíssimo para o desenvolvimento da indústria do mate no interior dos três estados do Sul, promovendo o transporte desde os armazéns, em que os ervateiros depositavam o produto da extração, ou desde os rudimentares barbaquás, aos engenhos nas vilas, com destaque para Curitiba e Joinville e, destas para embarque nos portos oceânicos. Temos assim, a atividade do tropeirismo e a figura do tropeiro, com raízes na cultura dos paranaenses, presentes nos primórdios da História do Contestado, responsáveis pelo surgimento dos primitivos pousos e das invernadas de Curitibanos e de Campos Novos, em Santa Catarina, e de Porto União da Vitória e de Rio Negro, no Paraná. Também foi a responsável pelas entradas no sertão, ligando posses, fazendas, povoados e vilas entre si e, estas, com outras regiões, promovendo processos de aculturação recíproca entre os tropeiros e os fazendeiros, os peões e os ervateiros, nos ciclos econômicos do muar, do gado bovino, do couro e da erva-mate, que perduraram durante cerca de 200 anos.
4. 2 Pastoreio
As frentes expansionistas paulistas atingiram os Campos de Curitiba, daí as margens dos rios Negro e Iguaçu, os Campos de Guarapuava e de Palmas, e os criatórios naturais de muares e bovinos no Rio Grande do Sul. Com a abertura do “Caminho dos Tropeiros”, esta frente paulista irrompeu no setor Leste do Território Contestado, promovendo a fundação da Vila de Lages que, por sua vez, abriu novas frentes, possibilitando a ocupação de Curitibanos, Campos Novos e outros, fazendo surgir os primeiros “pousos”, “currais” e “registros” e, a seguir, proporcionando o nascimento das primeiras fazendas de criação de gado no Planalto Catarinense.
No Sul, dependendo da área, havia várias denominações para os imóveis rurais, como estância, fazenda, fazendola, cabanha, chácara, granja, quinta, etc. Em Santa Catarina, os latifúndios do Planalto eram conhecidos mais como “fazendas”, daí porque usaremos apenas este termo, mesmo nos referindo às grandes e às pequenas propriedades
Nas sedes das fazendas maiores, posicionadas em ponto estratégico das propriedades, em lugares mais altos, eram construídas as edificações, geralmente de madeira lascada e cobertas com tabuinhas, compreendendo: a casa do fazendeiro, um sobrado bem repartido e com varanda; próxima a esta, a casa do capataz, menor, mas não menos primorosa; a casa dos peões, com as dependências para a peonada; e o galpão, abrigo para homens, animais, feno, equipamentos, etc. e onde os peões se reuniam ao redor do fogo para contar seus causos, sorver o mate amargo, trovar e cantar.
As propriedades não eram cercadas, como vieram a ser, depois, com arame farpado. Usava-se muito a cerca de ripas na sede, troncos partidos ou tábuas lascadas para as mangueiras e currais e a cerca de taipa-de-pedra para demarcar alguns setores. Os fazendeiros erguiam outras determinadas instalações que também eram indispensáveis para as atividades cotidianas e com o gado, como as porteiras, tronqueiras e cancelas, as peras, os bretes, os troncos, os palanques, as baias, os banheiros, as estrebarias e os chiqueiros. No interior das fazendas, havia, ainda, os piquetes próximos às sedes (pastagem com bebedouro, cocho e arvoredo), as invernadas (de bom pasto e boa aguada para a engorda dos animais) e os potreiros, áreas maiores (usados para os rodeios e controles de pastagens e de reprodução do gado).
De modo geral, o estancieiro, criador ou fazendeiro, residiam na sua propriedade, mas, não raro, construíam casas nas vilas para suas famílias. Os empregados de uma fazenda eram contratados conforme o tamanho da fazenda e as necessidades diárias para mantê-la. O capataz era o gerente-geral, ou o administrador, competindo-lhe a direção dos empregados, a distribuição dos serviços, sempre com participação ativa no campo. Os peões tinham o trabalho direto com o gado. Também eram considerados peões: o caseiro, o galponeiro, o tropeiro, o posteiro, o tropeiro, o cozinheiro, o carpinteiro, o seleiro, o ferreiro e outros artesãos.
Muito conhecidas nas fazendas eram as figuras do arrendatário e do invernador. O arrendatário era quem alugava uma parte da fazenda, ou até toda ela, nesta condição, substituindo a figura do fazendeiro, agindo como se o fosse. O invernador apenas arrendava o campo do fazendeiro para engordar seu próprio gado. Havia ainda o agregado, a quem o dono da fazenda arrendava uma parte das terras, nas extremidades mais distantes, onde ele agia como posteiro e como roceiro, dividindo (geralmente “às meias” ou “às terças”) o produto do cultivo de milho, do feijão, da batata, da mandioca e até da pequena criação de porcos e galinhas.
Especificamente no Centro-Oeste Catarinense, há de se considerar a existência de dois tipos de fazendas: as de criação e as de cultura, se bem que elas mantinham praticamente ambas as atividades, mas a diferenciação se faz sobre a predominância da produção. As propriedades em terras mais de campos, seguiam o modelo rio-grandense, enquanto que aquelas com mais mato do que pastagens e, devido ao maior número de acentuados desníveis, mantinham lavouras como atividade principal, da roça de milho à plantação de fumo. Não fosse o sal e o açúcar, peças de ferro e aço, louças e quinquilharias, as fazendas teriam total subsistência própria, pois nelas eram produzidos não só os alimentos, como o material para o trabalho. O fornecimento de mercadorias em falta era feito nas vendas, bodegas ou armazéns das vilas próximas.
4. 3 Extrativismo
ERVA-MATE
Assim como a Região do Contestado assistiu o processo da integração na indústria madeireira na primeira metade do Século XX, reunindo o extrativismo (corte das árvores na mata), o aproveitamento (para lenha, carvão, madeiras) o primeiro transporte (toras puxadas por bois ou em carroções), a industrialização básica primária (em tábuas, nas serrarias), a transformação (pasta mecânica, celulose e papel), o segundo transporte (pela estrada de ferro), o comércio (vendas internas e exportações), a indústria ervateira aqui também sempre funcionou de forma integrada, somando: a extração (poda das erveiras), o primeiro transporte (nas costas dos mateiros ou em lombo de burros), o aproveitamento (para chimarrão), a preparação primária (secagem em carijos ou barbaquás), a industrialização básica (etapa do cancheamento), a transformação (em pó nos engenhos), o segundo transporte (por carroças e ferrovia), e o comércio (para os mercados interno e externo). E, assim, para os caboclos do sertão catarinense, como a tábua de pinho passava por longo processo antes de servir à sua moradia, a erva-mate igualmente passava por diversas fases até se constituir como seu produto alimentar.
Tradicionalmente, a extração da erva-mate é efetuada no interior das florestas, junto aos pinhais, representando uma das rendas mais significativas da região. O produto é obtido das folhas da árvore (Ilex paraguaiensis) e posteriormente beneficiado nas ervateiras, daí seguindo, ou para consumo como “chimarrão”, hábito largamente difundido no sul do Brasil, ou para a transformação em “chá queimado”.
As atividades da erva-mate eram tradicionais no Planalto de Santa Catarina, sempre ligadas à exploração dos ervais naturais no Oeste Catarinense, também quando da existência da Colônia Militar de Chapecó, instalada no ano de 1882 na Campina de Xanxerê, em região próxima à principal Vereda das Missões.O sucesso da colônia teve como principal baluarte a abundância da erva-mate na região, de tal forma que os colonos que recebiam as terras tinham no seu corte e venda a única maneira de conseguir dinheiro. A formação de lavouras respondia apenas à necessidade de subsistência, em função da inexistência de mercado e de condições para o transporte dos produtos a outras regiões, para comercialização. Enquanto perdurou a exportação da erva-mate e seu preço se manteve alto, mantiveram-se boas as condições de vida dos seus habitantes (POLI, 1995, p. 83-84).
Na mata, os ervateiros faziam todo o processo empírico do preparo da erva-mate, iniciando pelo corte a facão, o sapeco preliminar para a retirada da umidade das folhas, a secagem final nos carijos, deixando as fases finais para os engenhos. “A erva-mate trouxe prosperidade à nossa terra por mais de meio século, mobilizando a mão-de-obra necessária à sua industrialização” (ALMEIDA, 1975, p. 112).
Cada ano, de julho a setembro, o caboclo, de facão afiado na mão, mete-se pelos matos onde abunda a ilex, e de herval em herval anda à procura das árvores que não foram podadas na safra anterior. E assim vai de árvore em árvore, desbastando-as, golpeando-lhes os galhos de baixo para cima e amontoando os ramos de espaço em espaço; como o cauchêro, caminha assim quasi o dia todo, percorrendo grandes distâncias. Depois reune todos os ramos cortados no local escolhido para a primeira fase de beneficiamento: a sapéca. Acêsa aí uma fogueira, vai passando galho por galho, ligeiramente sôbre as chamas; as folhas murcham crepitando. Québra então os galhos maiores e os vai colocando num cercado de páus, o raído, de modo a formar um fardo de forma cúbica que é amarrado com cipós (LUZ, 1952, p. 52).
Desde o tempo mais antigo, o ponto-de-partida da indústria do mate está no extrativismo vegetal, ou seja, no corte da árvore na floresta. A indústria ervateira tem seu primeiro referencial no corte (poda) das erveiras à foice ou facão. A atividade é considerada extrativista rural até a fase do “cancheamento”, depois de passar pelo “sapeco”, da segunda secagem em “carijos” ou em “barbaquás” e da “trituração” das folhas em engenhos. A etapa da industrialização do mate corresponde ao beneficiamento, que nada mais é do que uma fase complementar de preparo, de trituração da erva cancheada, dando-lhe melhor apresentação na embalagem e na rotulagem do produto para o consumidor final.
O Chimarrão na Cultura do Contestado
O mais antigo uso conhecido da erva-mate prende-se aos índios peruanos Quíchua, à qual pertencia à dinastia Inca. O próprio vocábulo peruano “mati”, hoje “mate” é originário dos Quíchua. O primitivo hábito indígena de tomar o mate em cuia foi constatado pelos conquistadores espanhóis quando o produto alimentar foi encontrado nos túmulos pré-colombianos de Ancon, próximo a Lima, onde a palavra “máti” siginificava “cuia”, “cabaça” ou “porongo”. Os grupos indígenas primitivos de Nazca também usavam o mate. “Esse nome passou do recipiente ao seu conteúdo, isto é, a bebida feita da infusão das folhas de Herva tomada em Mate (cuia). Adoptaram-no com essa mesma significação todos os povos sul-americanos, e assim se fixou e universalizou” (MARTINS, 1926, p. 13).
Os ervais nativos concentrados, entretanto, não se localizavam no Peru, mas, ao Sul e na parte Oriental da Cordilheira dos Andes, onde os Quíchua e, certamente, também outros aborígenes andinos vinham fazer a coleta anual. Talvez aí esteja uma das justificativas para a presença de vestígios dos Inca em alguns locais das fronteiras Oeste, Sudoeste e Sul do Brasil. Quando estudamos os índios do cone Sul-Americano e do Sul-Brasileiro, vimos que no Brasil do tempo do Descobrimento a Região do Contestado era o espaço natural dos Gê, descendentes dos Guaianá (inimigos dos Guarani). Os ervais nativos existiam, assim, num amplo território, em parte habitado pelos Gê e em parte pelos Guarani. A erva-mate tornou-se conhecida dos brancos, de um lado, quando os espanhóis tiveram contato com os Inca no Peru e, de outro, quando contataram os Guarani no Paraguai, mas isso não significa que os Gê desconheciam a erva. Em 1500, os sucessores dos Guaianá, integrantes do tronco lingüístico grupo Macro-Gê - os Kaigang - já conheciam a erva-mate, já preparavam a erva e já eram adeptos da sua infusão, tanto quanto os Guarani. O “beber mate” fazia-se pela obtenção do chá, ao natural, ou seja do líquido resultante do contato direto das folhas da planta com a água.
Os gaúchos espanhóis chamavam os animais que se criavam soltos, de forma selvagem, como os cachorros, os muares, os cavalos e o gado bovino, de “cimarrón”, palavra castelhana que queria dizer: xucro, selvagem, amargo, bárbaro, bruto. Etimologicamente, a palavra “cima” referia-se às regiões altas e pouco acessíveis, onde a gadaria e cavalhada se escondiam dos captores. Tomando contato com a erva-mate pura, amarga, rude, a ela também vieram a se referir com este nome. Assim, o chá da erva-mate teria sido denominado de “cimarrón” . Quando os colonizadores portugueses adentraram o Prata, aportuguesaram o vocábulo, que virou “chimarrão”.
A bebida, que originalmente era “máti” para os peruanos Quíchua, “kukuai” para os botocudos Héta, “caá-í” para os Guarani, “congõn” para os Gê, “cóquín” para os Kaigang, depois conhecida como “la provechosa” e “yerba” para os espanhóis, “tererê” (com água fria) ou “cimarrón” (com água quente) para os castelhanos, “congonha” para os portugueses e “chimarrão” para os brasileiros, mantém, assim, vínculo milenar com os povos da América do Sul. Lembramos que, da mesma forma como o índio Guarani, o castelhano, o português, o luso-brasileiro e sua mestiçagem nos pampas foram os que, basicamente, originaram o gaúcho no Rio Grande do Sul, o índio Gê, mais o português, o luso-brasileiro e sua mestiçagem originaram o curitibano nos interiores do Paraná. Ambos, gaúchos e curitibanos – formadores do caboclos do Território Contestado - antes de virem para esta região - terra dos Gê - conheciam a erva e tomavam mate, dando continuidade ao mesmo hábito já propagado entre todos os aborígenes, habitantes mais antigos que os entecederam aqui.
No Brasil, se o Rio Grande do Sul nunca apareceu na liderança da produção de erva-mate (por possuir poucos ervais), jamais perdeu o título de maior consumidor do produto, pois neste Estado é, historicamente, onde mais se toma chimarrão. “[...] O uso dessa bebida é geral aqui. Tomasse-o ao levantar da cama e, depois, várias vezes ao dia. A chaleira d’água quente está sempre ao fogo e, logo que um estranho entra na casa, se lhe oferece o mate” (SAINT’HILAIRE, 1935, p. 110). Mesmo assim, Paraná e Santa Catarina não ficavam muito para trás do Rio Grande do Sul em termos de consumo.
Mate, mate e mais mate! Essa a senha do planalto, a senha nas terras baixas, na floresta e no campo. Distritos inteiros, aliás, províncias inteiras, onde a gente desperta com o mate, madraceia o dia com o mate e com o mate adormece. As mulheres entram em trabalho de parto e passam o tempo de resguardo sorvendo mate e o último olhar do moribundo cai certamente sobre o mate. É o mate a saudação da chegada, o símbolo da hospitalidade, o sinal da reconciliação. Tudo o que em nossa civilização se compreende como amor, amizade, estima e sacrifício, tudo o que é elevado e profundo e bom impulso da alma humana, do coração, tudo está entretecido e entrelaçado com o ato de preparar o mate, servil-o e tomá-lo em comum. A veneração do café e o perfumado fetichismo do chá nada são, sem sequer uma idéia da profunda significação do mate, na América do Sul, que não se pode descrever com palavras, nem cantar, nem dizer, nem pintar, nem insculpir em mármore. (AVÉ-LALLEMANT, 1953, p. 251-252).
Antes mesmo de ser aberta a Estrada das Tropas, o Porto de Paranaguá exportava para a Colônia do Sacramento, além da cal e da madeira, alguma congonha fabricada no alto da Serra. Pela mesma época parece que se difundiu inclusive em São Paulo o costume de beber mate.
Ao se espalharem as fazendas de gado ao longo e para fora da Estrada das Tropas, a erva começou a ser colhida nas matas vizinhas e preparada mais para atender as necessidades locais do que para venda. Os fazendeiros permitiam aos agregados e peões prover-se com a planta por acaso encontrada dentro da propriedade ou nas vizinhanças, à qual não atribuíam maior valor (QUEIROZ 1981, p. 31-32).
Discorrendo sobre a hospitalidade do “caboclo” da região serrana, creditada ao tempo da Guerra do Contestado, LUZ lembrou que “[...] mesmo nas moradas as mais humildes e desconfortáveis cultua-se a hospitalidade: mal entra um viajante extranho ou conhecido, logo vem a infalível chícara de café ou a cuia de chimarrão” (1952, p. 47).
A erva-mate foi, inicialmente, o grande fator de atração. Por muito tempo, quase foi a única atividade dos canoinhenses. Preços compensadores, erva-mate, representava riqueza, prosperidade. Sua influência na população é marcada: criou hábitos, que jamais desaparecerão. Em tôrno da cuia e por causa da cuia, grandes negócios se têm realizado. O hábito do chimarrão é um infatigável criador de amizades, de contactos pessoais, de solidariedade. Ele ensina a meditar, ser paciente, refletir. A cuia e a bomba constituem preocupação importante na vida diária. Como a hora do almôsso e do jantar, existe também a horinha do chimarrão” (SILVA, 1941, p. 20).
O complexo econômico-cultural da erva-mate, que perdura na Região do Contestado há mais de duzentos anos, compreende os seguintes traços: neste território existiam imensos ervais naturais; os primitivos indígenas tomavam a erva antes da chegada dos brancos; os primeiros caboclos extraíam a erva das matas e sabiam produzir rusticamente o mate; antes da abertura da Estrada Real, os caboclos catarinenses já estavam habituados ao uso do chimarrão; na metade do Século XIX, já se produzia erva-mate nos sertões do Território do Contestado; e, a erva-mate era importante produto de exportação e fonte de receitas para todos os envolvidos no ciclo produtivo. De quebra, esta riqueza do Planalto ensejou a formação do primeiro truste econômico do mate no Litoral de Santa Catarina.
Ratificamos o realce do que a erva-mate significava para a subsistência do caboclo pardo. Como boa parte dos ervais nativos localizava-se em terras devolutas, dependia-se de licenças especiais dos Estados para a extração, que eram concedidas sob apadrinhamento para os “coronéis-de-roça” ou para os “chefetes-de-aldeia”, só estes que conseguiam arrendar as árvores junto aos poderes públicos. Até o primeiro terço do Século XX, eram os grandes fazendeiros, comerciantes e industriais, portanto, que faziam suas fortunas às custas dos caboclos contratados para o trabalho braçal nas matas, da mesma forma como se fazia com os peões contratados para a lida com o gado nos campos.
Postado por Nilson Thomé às Sábado, Fevereiro 14, 2009
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