A formação do homem do Contestado no espaço livre
Origens – O luso-brasileiro – Os indígenas – O negro – O caboclo pardo
2. 1 As Civilizações Primitivas do Contestado
Em períodos entre vinte e dez mil anos atrás, o ser humano “moderno”, descendente do homo sapiens, chegou ao continente americano, em levas sucessivas originárias de outros continentes, principalmente da Ásia e, possivelmente, da Austrália. Pelos Andes, fizeram a rota Norte-Sul e em seguida adentraram na floresta amazônica, no chaco-pantanal e no planalto brasileiro.
O homem teria adentrado à área que hoje corresponde ao Sul do Brasil por volta de seis a oito mil anos antes de Cristo, após o último degelo conhecido da crosta terrestre, quando a conformação geológica se revelou bastante parecida com a atual.
Nossos estudos em antropologia e arqueologia induzem-nos a crer que os primeiros humanos a alcançar o Território Contestado aqui chegaram entre 8.000 aC e 6.000 aC. Eles seriam integrantes da civilização da idade-da-pedra conhecida por Tiwanaku, muito anterior aos Incas, originária do altiplano da Cordilheira dos Antes, quando povoavam as proximidades do Lago Titikaka, hoje Bolívia. Teriam aberto o “Caminho de Peabirú-Sudeste”, para alcançar as terras baixas orientais e o Oceano Atlântico, na altura da Ilha de São Francisco do Sul. Deixaram seus vestígios de pedra nos morros do Timbó, na Serra do Espigão, no centro do Contestado.
Depois, o Contestado foi habitado por outras quatro importantes civilizações conhecidas também em outras partes do Cone Sul; as pré-ceramistas Umbú e Itararé ou Humaitá (pedras lascada e polida), e as ceramistas Taquara e Guarani (cerâmica lisa e decorada). Entre 5.000 aC e o tempo próximo ao Descobrimento do Brasil, deixaram seus vestígios em galerias subterrâneas, casas subterrâneas, sepultamentos, e locais-oficinas.
Todos estes grupos humanos primitivos teriam desaparecido completamente. Porém, existem correntes que entendem que parte dos índios conhecidos seriam descendentes de algumas dessas civilizações
2. 2 O Homem no Contestado a partir do Tempo do Descobrimento
Inserido na Floresta da Araucária, nas regiões de matas e de campos, o Contestado era território indígena dos Gê, representados pelos Kaingang e Xokleng, tradicionais rivais dos Guarani que se localizavam mais a Ocidente, em terras espanholas, e dos Carijó, habitantes do Litoral. Conheciam-nos apenas os bandeirantes paulistas que os encontravam nas suas expedições para o Sul. Gradativamente, primeiro às centenas e, em seguida, em alguns milhares, estes paulistas penetradores, na maioria mamelucos, passaram a habitar também o Território Contestado. Parte deles manteve contato com o índio domesticado, o Kaigang. Simultaneamente, gaúchos dos pampas também misturaram-se com os Guarani e com os Kaigang, vindo a conhecer, no Século XIX, o Território Contestado.
Então, foi desta forma que portugueses, paulistas-mamelucos, espanhóis-castelhanos, gaúchos-mamelucos e índios, além de negros, mulatos, cafuzos e alguns imigrantes europeus, constituíram a primeira grande população do Planalto Central Catarinense, compondo um quadro étnico que só veio a sofrer substancial modificação após a Guerra do Contestado, no advento da colonização com novos imigrantes europeus e seus descendentes.
Interessa-nos saber algo sobre a formação do homem do Contestado, a partir das suas origens e dos seus grupos étnicos formadores.
2. 3 A contribuição do homem branco luso-brasileiro
Desde a época da Governadoria-Geral do Brasil, os portugueses aproveitaram para se consolidar na costa brasileira e avançar para o Oeste, utilizando o sistema agrário das sesmarias, uma herança do tempo das capitanias hereditárias. A atividade pastoril, forma inicial do povoamento do sertão brasileiro, realizou-se por meio de concessões de terras em sesmarias e sua distribuição foi motivada pela necessidade da criação extensiva de gado. Eram “datas” de enormes proporções, geralmente muito maiores que as sesmarias do litoral, o que se justificava diante da necessidade de amplas áreas de pastagens. A pecuária representou uma das mais importantes atividades para a ocupação e o desbravamento das diversas regiões do Brasil.
O BRANCO NO CONTESTADO MERIDIONAL
A abertura de um “caminho real”, para ligar a Colônia do Sacramento (antiga possessão portuguesa no Extremo-Sudoeste do Uruguai) e os Campos de Viamão, a São Paulo, pelo interior do continente, foi o marco referencial do início do desbravamento e da ocupação do Planalto de Santa Catarina.
Esta “Estrada Real”, ligando o Extremo-Sul ao Sudeste do Brasil pelo interior, representou o início da prosperidade para algumas regiões ao longo da sua extensão. Durante cerca de cem anos, esta Estrada Real registrou intenso movimento de tropeiros que passaram a adquiri-los de estanceiros que por lá se estabeleceram, justamente para a exploração das reses. E quando a disponibilidade de muares e de gado diminuiu no Viamão, no Jacuí e em Vacaria, restando em abundância nas bandas do Rio Uruguai, foi preciso aos tropeiros buscá-los na região então conhecida como Missões. A mudança de local da fonte abastecedora provocou a abertura de outros caminhos, mais a Oeste da Estrada Real. Com isso, o movimento em sua extensão foi reduzindo gradativamente, provocando o declínio da até então prosperidade nos povoados à sua margem.
Ao assumir a Capitania de São Paulo, Morgado de Mateus planejou consolidar a presença dos portugueses no Extremo-Sul da sua jurisdição, também no ponto que alcançava o Rio Pelotas. Em 1766, confiou ao sertanista, Guarda-Mor Antonio Correa Pinto de Macedo, a tarefa de fundar uma povoação nas chapadas da Vaccaria, na parte Sul dos campos das Lagens, onde ele já tinha fazendas, persuadindo-o a convocar moradores e índios destas paragens para se fixarem nas margens do Rio Pelotas ou do Rio Canoas.
Foi na condição de posseiros que se estabeleceram alguns tropeiros e fazendeiros, uns portugueses e outros luso-brasileiros, nesta área bem ao Sul dos “Sertões de Curitiba”, nos ainda pouco habitados Campos de Lages. Na caravana de Correa Pinto, estavam muitos luso-brasileiros e mamelucos (estes também chamados de “brasilíndios”). A fundação oficial da vila aconteceu a 22 de maio de 1771, quando possuía cerca de 400 habitantes, já abertas algumas ruas e construídas casas.
Historicamente, luso-brasileiro é considerado aquele homem nascido no Brasil, que tenha ascendência portuguesa. Consta nas informações do sistema wikipédia (web), que os portugueses constituíram a parte da população mais significativa na criação do Brasil. Devido à falta de organização das organizações luso-brasileiros, não há estimativas sobre o número de descendentes de imigrantes portugueses no Brasil disponíveis. É notório, porém, que há mais de 25 milhões de luso-brasileiros descendentes dos cerca de 1,5 milhão de portugueses que chegaram ao Brasil após 1850. Muitos outros milhões de brasileiros possuem origens portuguesas que remontam aos centenas de milhares de colonos vindos de Portugal que se fixaram no País desde o Século XVI, asm, estes últimos, em sua grande maioria, sabem muito pouco sobre suas origens.
A Revolução Farroupilha complicou a vida no Planalto Serrano Catarinense logo depois de 1835, quando a bandeira dos revoltosos foi desfraldada no Rio Grande do Sul, fazendo com que a Província de São Paulo praticamente fechasse as fronteiras com o Estado sulino, proibindo em boa parte o transporte de gado bovino e eqüino da Província do Rio Grande do Sul pela Estrada das Tropas, assim impedindo os rendosos negócios dos tropeiros que demandavam a Sorocaba. A medida provocou impacto tal que, imediatamente, verificou-se a decadência do movimento comercial na Vila de Lages, nos povoados, nos pousos e nos currais ao longo da Estrada das Tropas.
Como a economia rural predominava sobre os destinos do Planalto Serrano Catarinense, na segunda metade do Século XIX outro acontecimento veio a prejudicar os negócios ao longo da Estrada das Tropas, da Estrada das Missões e de suas Veredas, atingindo em cheio os campos de Lages, Curitibanos e Campos Novos. Ocorreu no Rio Grande do Sul que a indústria do charque passou a se expandir e a absorver intensamente a produção de gado bovino das suas estâncias. Os fazendeiros gaúchos deixaram de criar cavalos e mulas e, desinteressaram-se pelo tropeirismo, concentrando suas atividades só na mais lucrativa criação de gado, para fornecimento às charqueadas, na maioria, localizadas no Sul e Sudeste do Estado sulino, de onde a carne salgada era exportada. O reflexo em Santa Catarina foi imediato. Nossos criatórios, distantes das maiores charqueadas e dos portos de embarque - também em Laguna - tinham dificuldade nas vendas, pois, com o transporte, seus custos eram mais elevados, tanto para o gado em pé como para o charque. O movimento no trecho catarinense, entre os registros dos rios Pelotas ou Uruguai e dos rios Negro ou Iguaçu, caiu consideravelmente. Anos depois – entre 1870 e 1880 – foi a vez da estrada-de-ferro acabar com a até então concorrida Feira de Sorocaba, para onde convergiam os negócios dos tropeiros
O BRANCO NO CONTESTADO SETENTRIONAL
O setor setentrional do Território Contestado, compreendendo os cursos dos rios Paciência e Timbó, afluentes da margem esquerda do Rio Iguaçu, bem como as terras altas da Serra do Espigão, onde estão suas nascentes, foram explorados oficialmente pela primeira vez em 1768, época em que esta parte do Sul do Brasil constituía a Capitania de São Paulo.
Curiosamente, estas terras da margem esquerda dos rios Negro e Iguaçu, aproximadamente entre o afluente Rio São João (atual divisa Mafra-Três Barras) e o afluente Rio Timbó (atual divisa Irineópolis-Porto União), entrecortadas por dezenas de afluentes menores, com as nascentes nos contrafortes da Serra Geral, da Serra do Espigão e da Serra da Taquara Verde, constituíram a última das fronteiras rasgadas no setor Setentrional da Região do Contestado, tendo permanecido praticamente desabitadas até o romper do Século XX. O território era dominado pelos ameaçadores botocudos, como os Xokleng, eles que, ao contrário dos índios Kaigang – que foram aldeados mais cedo – ofereciam resistência a qualquer tentativa de contato do elemento branco. Sem campos para a criação de gado bovino, principal atividade dos paranaenses no interior, naquela época, a única atração que a esquerda do Vale do Médio Iguaçu exercia eram os ervais, estes localizados no interior da floresta, habitat indígena. Ali, qualquer incursão era uma arriscada aventura.
As explorações ao Médio Vale do Iguaçu, associadas a posterior ocupação dos Campos de Guarapuava e dos Campos de Palmas, merecem especial registro, pois vieram a constituir uma das estruturas do desbravamento paranaense e catarinense, possibilitando a abertura de novos caminhos pelo Território Contestado, como a rota direta entre Palmas e União da Vitória, e outras circundantes à Região do Contestado, como a ligação entre Palmas e Campos Novos.
O ponto de partida para a fundação de um povoado, na margem esquerda do Rio Iguaçu, onde o Paraná criaria a Vila de Porto União da Vitória, data de 1842, quando um dos conquistadores dos Campos de Palmas, procurou e achou o vau neste ponto do rio. O passo viria a possibilitar maior facilidade para o transporte de sal e de gado entre Palmeira, nos Campos Gerais, e os Campos de Palmas. E entre o vau, que ficou conhecido como Porto da União, e a Vila de Palmas, foi aberta uma estrada em 1846, encurtando as distâncias.
A navegação a vapor, entre Porto Amazonas e Porto da União, trouxe considerável progresso, tanto para Porto União da Vitória como para Palmas. Entretanto, o roteiro da antiga estrada entre Palmas e União da Vitória, com 140 km, passando o Rio Jangada, representava dificuldades para o transporte. A solução encontrada pelo governo da Província do Paraná foi a abertura de uma nova estrada, que começou a ser construída em 1884. as obras prosseguiram até ser, finalmente, aberta em 1907, depois que nela se estabeleceu serviço regular de transporte de cargas e de passageiros por diligências.
2. 4 A contribuição indígena
Antes da vinda do “homem branco”, o Contestado, como espaço livre (mas não vazio), era habitado por dezenas de tribos indígenas, classificadas em variados troncos lingüísticos. Os silvícolas da tradição Guarani ocupavam as terras mais baixas dos vales dos rios Iguaçu, ao Norte e, Uruguai, ao Sul, enquanto que os índios do primitivo tronco Guainá ou Tapuia, do grupo Gê, distribuíam-se pelas terras mais altas do planalto. Assim, os campos e as florestas do Contestado eram de domínio dos Gê, índios que, conforme as derivações lingüísticas ou características culturais, a critério dos estudiosos eram chamados de Kaigang, Xokleng, Xócren, Patachô, Botocudo, Cren, Bugre, Bituruna, etc.
Indomaveis e nomades ao ultimo extremo, a isso levados pela continua guerra que lhes têm feito os brancos, habitam, estes selvagens, uma facha de sertão cercada por todos os lados de povos, villas e cidades, conservando, entretanto, no coração d’essas matas, quasi virgens, seus habitos primitivos (OURIQUE, 1887, p.24).
Durante todo o tempo da ocupação "branca" da Região do Contestado, de 1800 para cá, praticamente não se conheceu os Guarani ou grupos deste tronco, que foram vítimas das bandeiras paulistas escravagistas. A área, no decorrer do século XIX, era território sob domínio absoluto dos Kaigang e dos Xokleng que, genericamente, eram chamados pelos camponeses, sertanejos e fazendeiros de "bugres" ou de "botocudos". E só mais recentemente foi que se separaram os Kaigang (Coroados) dos Xokleng (Botocudos). A nação dominante na Região do Contestado, nos dois últimos séculos, era a Kaigang, da qual derivou o grupo Xokleng. Com dialeto pouco diferenciado dos Kaigang, o que prova sua filiação ao tronco Gê, os índios Xokleng eram grupos arredios de caçadores, coletores e pouco agricultores. Semi-nômades, dependiam quase que totalmente da caça e da coleta. Eram os típicos habitantes das matas, constituindo-se nos selvagens que mais resistiram às tentativas de aproximação com os grupos brancos.
Quando da construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande e da deflagração da Guerra do Contestado, havia vários tipos de “bugres” conhecidos na região: os Xokleng puros, ainda em estado selvagem, isolados em porções das matas fechadas da Floresta da Araucária; os Kaigang puros, já aldeados com alguns Guarani, estes também chamados de Coroado, nas regiões de campos e em fase de catequização; os cafusos, confinados no Toldo do Quati; e os mamelucos, em processo de aculturação e convivendo com os caboclos.
Os Xokleng do Contestado não queriam aproximação. Sentindo-se ameaçados, em bandos, atacavam fazendas e casas isoladas, para assaltar, matar e roubar utensílios e ferramentas. Eles eram muito atraídos pelos machados e facões trazidos pelos brancos. Foram rotulados de selvagens, destemidos, bárbaros, violentos, arredios e, comparados a bichos-do-mato, quando o “homem civilizado” aqui chegou e formou grupos de bugreiros para caçá-los, aprisioná-los e matá-los brutal e impiedosamente.
Durante a segunda metade do século XIX e nos primeiros anos do século XX, em Santa Catarina, ficaram famosos os grupos de “pedestres” e de “batedores-de-mato”, ou então, de "afugentadores de bugres", como também eram conhecidos, organizados para, num primeiro momento, contatar, aldear, pacificar e catequizar os índios. Entretanto, suas ações logo se caracterizavam como de "bugreiros" - a antítese de "bugres" - por afugentar, caçar, dispersar e matar os índios. A ordem final era: exterminar.
As tropas de bugreiros compunham-se, em regra, com 8 a 15 homens. A maioria deles era aparentada entre si. Atuavam sob o comando de um líder. A quase totalidade dos integrantes desses grupos eram ‘caboclos’, que tinham grande conhecimento sobre a vida no sertão. Atacavam os índios em seus acampamentos, de surpresa. Às vítimas poucas possibilidades havia de fuga (SANTOS, 1997, p. 27).
As frentes expansionistas paulistas e curitibanas que alcançaram o Contestado adentraram no espaço livre dos indígenas. No começo, os índios resistiram às penetrações brancas, mas não constituíram forte empecilho, apesar de seus constantes ataques às expedições exploratórias, aos tropeiros e às povoações. E aqueles que não se aldearam, simplesmente foram caçados e mortos.
Os Kaigang
A parte Setentrional e Ocidental do Território Contestado era, historicamente, ocupada pelos Kaigang, cujos domínios alcançavam também os Campos de Guarapuava e, ainda, as regiões Centro, Norte, Nordeste e Noroeste do Rio Grande do Sul.
A nação Kaigang - descendente dos Guaianá - que era respeitada pelas tribos dos Guarani desde os tempos do Descobrimento e, pelos bandeirantes paulistas escravagistas dos anos 1600, resistiu bravamente às investidas do homem "branco" até a virada do Século XVIII para o Século XIX, impedindo a ocupação e o povoamento do seu território pelos "civilizados", ao contrário do que ocorreu nos Tapes e nas Missões do Rio Grande do Sul, com a destruição das reduções jesuítas.
As frentes expansionistas paulista-curitibanas, após contatos iniciais com os Kaigang em Guarapuava, conseguiram domesticar alguns grupos, como os chefiados pelos caciques Viri e Condá, o primeiro, apaziguado em Guarapuava e, o segundo, que por volta de 1840 estava assentado nos Campos de Palmas-de-Baixo, mais precisamente na Campina do Irani, junto às cabeceiras do Rio Irani. Ambos foram importantes para a pacificação e o aldeamento dos silvícolas, principalmente Condá, que foi usado para o contato com seus irmãos do Rio Grande do Sul.
Os Xokleng
As terras mais altas, frias e úmidas do Contestado, na Serra Geral, incluindo a densa mata de araucárias da Serra do Espigão, constituiam parte do habitat dos Xokleng, como se nelas tivessem buscado refúgio para escapar dos também ferozes co-irmãos Kaigang, estes que preferiam viver nas áreas mais abertas dos campos. Mesmo pertencendo a um só tronco, o Macro Gê, as culturas dos dois grupos apresentavam sensíveis diferenças culturais. Assim, era no abrigo da escuridão dos pinhais, que os Xokleng construíam suas habitações. Conhecidos simplesmente por “bugres” ou apenas “botocudos”, estes nativos camuflavam-se na vegetação de tal sorte que era muito difícil percebê-los.
Os Xokleng viviam em grupos, separados uns dos outros, que volta e meia lutavam entre si, disputando espaço, sem contar que, permanentemente, lutavam contra os Kaigang, inclusive para roubar-lhes as mulheres, e atacavam impiedosamente os brancos das frentes pioneiras que avançavam sobre seus territórios. Suas armas de guerra e de caça eram: o arco, a flecha, a lança e a borduna. Viviam percorrendo as florestas em busca de alimentação, dividindo com os companheiros o que conseguiam caçar ou coletar, como raízes, frutos silvestres, pinhões, mel e larvas. Faziam uma bebida fermentada à base de mel, água e xaxim. O fogo era obtido pela fricção de pedras. Comiam carne assada na brasa e também preparavam o barreado. A base de alimentação entre março e junho era o pinhão, que retiravam das pinhas; também armazenavam as pinhas em cestos, que eram mergulhados das águas frias de córregos no interior da floresta, para alimentação nos meses seguintes.
Perambulando pelas matas, costumavam acampar ao relento, sob as copas das árvores. Algumas vezes, faziam pequenos ranchos de varas finas, com teto em forma de abóboda, coberto de folhas de coqueiros, palmeiras ou xaxins. Quando acampavam, construíam choças maiores, para uso coletivo. Obtinham vasilhames de troncos escavados em forma de cochos. Fabricavam cestos de vários tamanhos e para variados fins. Tornavam alguns balaios impermeáveis forrando-os com cera de abelha. Com técnica pouco refinada, faziam vasos de cerâmica e, as panelas, de barro e carvão amassados, que depois de moldadas e secas, eram queimadas para se obter consistência e durabilidade.
As tribos dos botocudos, também descendentes dos antigos Guaianá - entre elas se destacando os Xokleng, eram muito arredios, permaneceram internados nas matas, vivendo em estado pré-histórico até os primeiros anos do século XX. Dominando as partes altas das serras da Taquara Verde, Espigão e Geral, escaparam de todas as tentativas de pacificação, de catequese ou de aldeamento. Às vezes, atacavam os tropeiros ou casas isoladas, para matar os brancos; noutras, para roubar ferramentas, utensílios, facas e alimentos. Por serem vingativos ao extremo, até os Kaigang os respeitavam.
Descendência indígena
Ao longo dos caminhos abertos no Sul do Brasil, gradativamente, se foram instalando muitas famílias mamelucas, com os homens trabalhando, tanto nas tropas como nas fazendas, na condição de peões ou agregados. Sem fácil acesso a títulos de propriedade de terras, o caboclo logo passou a ocupar terras devolutas e inexploradas na condição de “posseiro” e, em poucos anos, dividiu o espaço com os “bugres” – os Kaigang e os Xokleng – ou os matando ou com eles realizando mútuo processo de aculturação. Esta geração cabocla aprendeu a conviver com a natureza proporcionada pela Floresta da Araucária e com os nativos, tanto nas partes de campos, como nas de matas fechadas. Não poucos indígenas sobreviventes do etnocídio promovido pelos bugreiros - que na sua maioria também eram caboclos - no Planalto Catarinense, vieram a mesclar-se com o “homem branco” na Região do Contestado. Pelo que conseguimos apurar em nossas pesquisas de campo, esta mistura étnica deu-se do caboclo homem com a mulher índia, fruto de estupros violentos e de relações por elas consentidas quando se sentindo vítimas de inferioridade.
Os novos mamelucos catarinenses, que denominamos de “geração do caboclo-pardo”, também herdaram traços dos Kaigang e dos Xokleng, tanto características físicas (pele de cor parda, poucos pelos, cabelos pretos, feição mongolóide primitiva e estatura mediana), como também antigas tradições, linguagem, hábitos, crenças, usos e costumes. De 1994 a 1997, pesquisamos as origens e as etnias de diversos grupos de estudantes, na faixa de 18 a 24 anos, escolhidos dentre os calouros nos cursos superiores mantidos pela Universidade do Contestado em Caçador e em Fraiburgo. Sem surpresa, num universo de 200 alunos pesquisados, encontramos 16, que nos declararam ter seus genitores - pais ou mães - ascendência do índio regional em nível de terceira ou quarta geração. Ora, ao mesmo tempo em que nenhum dos entrevistados assumia, antes da pesquisa, esta ascendência, o trabalho nos deu o índice de 12,5%, em pleno final do Século XX.
2. 5 A contribuição do negro
Desde quando da abertura dos caminhos dos tropeiros, da instalação das fazendas de criação e das primeiras explorações de ervais nativos, o negro participou da formação do homem do Contestado. Se considerarmos a presença, aqui, de pessoas desta raça, na forma pura, sua influência neste processo seria insignificante, pois poucos foram os africanos que se estabeleceram no Contestado. Entretanto, observamos que a maior parte dos caboclos da Região do Contestado, do tempo da Guerra do Contestado, era constituída por miscigenados de brancos com negros (mamelucos), tanto vindos de São Paulo nas entradas para ocupação das terras, na condição de escravos, como de trabalhadores livres oriundos de outras partes do país para a construção da ferrovia. Alguns dos principais líderes do movimento rebelde de 1913-1916, considerados “comandantes-de-briga”, eram negros, como Olegário Ramos, Joaquim Germano, Benevenuto Lima e Adeodato Manoel Ramos.
No Planalto Catarinense, o sistema escravocrata era um pouco diferente de outras partes do Brasil: havia muito mais liberdade, o tratamento era mais humano, os negros participavam dos trabalhos gerais das fazendas, a ponto de, antes da Lei Abolicionista de 1888, a maior parte dos escravos já ser livre por iniciativa dos próprios fazendeiros.
No início do Século XX, entre 1908 e 1910, houve uma rápida corrente imigratória de negros e mulatos para a Região do Contestado, que vieram da Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, na condição de trabalhadores contratados para a abertura da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, no trecho de União da Vitória (PR) a Marcelino Ramos (RS). O contingente recrutado pela Brazil Railway Company para trabalhos braçais em nossa região chegou a cerca de oito mil pessoas, parte delas a seguir e até 1916 sendo aproveitada para a implantação dos trilhos no Ramal de São Francisco, trecho entre Mafra/Rio Negro e Porto União/União da Vitória, na direção do porto de São Francisco. Concluída a construção, já na segunda década do século XX uma parcela destes elementos não regressou à origem, optando por se estabelecer nas terras marginais da ferrovia e assim se inseriram na sociedade regional, trazendo suas tradições, usos e costumes.
Os historiadores de Santa Catarina são unânimes ao afirmarem que a participação do negro da formação da sociedade catarinense não foi significativa, devido ao pequeno número de africanos introduzidos.
Em Santa Catarina mesmo, o elemento africano nunca constituiu forte população; adensando-se mais no litoral, zona de lavouras, entretanto e em vista da colonização alemã e italiana, iniciada aí em 1828, conservou-se em baixa porcentagem. Em 1810, de uma população total de 31 mil habitantes havia apenas 7 mil escravos negros. Em 1872, a sua porcentagem era de 8,9%. Quando abolida a escravidão, em 1888, o número de escravos em Santa Catarina atingia apenas a 8 mil; nesta época a população total era de 200 mil habitantes. Um tão fraco contingente negro em Santa Catarina, especialmente no planalto, muito pouco influiu na gênese da sua população (LUZ, 1952, p. 41).
Também existe unanimidade entre os historiadores catarinenses e regionais do Contestado, nas afirmativas de que o negro pouco influenciou a formação da sociedade serrana catarinense, por seu pequeno número em relação à população, aqui reproduzindo os índices obtidos para essa então província. “É verdade que, das fundações do planalto, somente Lages teve pelourinho, cuja corrente de ferro entrou no inventário de Correia Pinto e ficou depois abandonada no sótão da casa de seu sucessor” (COSTA, Octacílio. Apud LEMOS, 1977, p. 67).
O negro entrou na formação da população serrana em uma escala muito pequena. Isto porque a pecuária, por longo tempo única ocupação do homem do Planalto, não necessitava muitos escravos. O negro só aparecia onde era exigido um serviço braçal penoso: na lavoura e na mineração. O pastoreio, de execução fácil e agradável, era de bom grado feito pelos “peões” mamelucos. Não tendo, portanto, havido nenhuma mineração. Nem lavoura intensiva no planalto, aí o negro escasseou (LUZ, 1952, p. 41).
Não há dados numéricos confiáveis nem registros específicos. Mesmo assim, é possível presumir-se que alguns negros tenham habitado pousos, currais ou invernadas na Serra Catarinense no tempo do auge da Estrada das Tropas Viamão-Sorocaba.
A Bandeira que acompanhou Correa Pinto na viagem de mudança para as “Lagens” – presume-se – era composta de umas oito ou nove famílias. A elas vieram juntar-se no primeiro lustro da fundação algumas outras, formando uma população inicial de mais de uma centena de habitantes. A estes deverão ser acrescentados os escravos de cada família. Quantos eram? Não há levantamento oficial, mas não será exagero dar para cada núcleo familiar a média de três escravos. E assim teriam vindo para Lages, de 1766 a 1770, uns cinqüenta escravos [...]. Em 1801, conforme estatística levantada pelo Padre Manoel Simões, vigário da Vila, vivam em Lages 78 escravos e 58 escravas [...]. Considerando sua extensão territorial, Lages não foi um município de grande população escrava. É explicável pelo fato de ser, naquela época, um centro de atividades quase exclusivamente pastoris e o negro não ter sido, nunca, um grande entusiasta das lides do campo. Era mais um homem para a lavoura e atividades correlatas, assim como a mulher se adaptava mais facilmente aos trabalhos caseiros. O que não quer dizer que com o correr do tempo um grande número deles não se afeiçoasse à via nas fazendas de gado, dando mesmo excelentes peões (COSTA, 1982, p. 178-182).
Quando da Revolução Farroupilha, conflito que se estendeu ao longo de dez anos, entre 1835 e 1845, no Rio Grande do Sul e parte de Santa Catarina, o escravo que servia ao exército revoltoso era considerado como liberto, igual ao exército Imperial, pois os livres não aceitavam combater ao lado de cativos. Durante o Brasil Colônia, os escravos serviam o Exército, mas seus senhores eram quem recebiam os soldos. Já na época do Império, os escravos que sentassem praça eram considerados libertos. Então, “os farroupilhas apenas imitaram ao Brasil, ao estenderem ao escravo-soldado os mesmos direitos que possuíam no exército Imperial”. (FLORES, 1980, p. 20).
Também por ocasião da Guerra do Paraguai, com a criação dos corpos de “Voluntários de Pátria” em 2 de outubro de 1867, o negro do Contestado teve um forte motivo para escapulir do regime da escravidão. O negro ganhava a liberdade definitiva quando se alistava ao Exército Brasileiro, garantindo-a mesmo que não passasse na inspeção de saúde e por isso fosse dispensado.
A Invernada de São João dos Pobres
Em meados da metade do Século XIX, o rico fazendeiro da família Carneiro, de nome Possidônio de Paula Carneiro, originário de Guarapuava, Estado do Paraná, numa iniciativa humanitária, resolveu doar a um grupo de escravos negros de quem era dono e que muito bem o serviam, enquanto lhes dava a liberdade, uma área de terras de campos, de “invernada”, localizada no Município de Porto União da Vitória, na região mais alta da “Serra do Espigão”, situada em direção Sul entre a “Serra de São Miguel” e os “Campos de São João de Cima”, tudo na época território administrado pelo Paraná. Deixando terras, prata, animais e escravos, ele faleceu na sua fazenda, em São João, a 28 de dezembro de 1878 e, conforme seu testamento, em inventário realizado em Palmas a 13 de outubro do ano seguinte, os escravos obtiveram a liberdade e parte das terras da fazenda.
Diversos grupos familiares de ex-escravos, agora libertos, fixaram-se na área que receberam em doação – uma “invernada” – formando um ajuntamento de casebres, que logo ficou conhecido como “Povoado de São João dos Pobres”, projetando-se também porque nas proximidades, passava a “Estrada Estratégica”, construída em 1885 pelo Império, para ligar o Porto União da Vitória com Palmas, daí demandando à fronteira com a Argentina.
Em 1906, quando os agrimensores da Companhia Estrada de ferro São Paulo Rio-Grande, depois de mudar o projetado traçado original da linha permanente, que atravessaria o Território Contestado (antes prevista para se estender pelos Campos de Palmas-de-Baixo, Campos de São João do Irani e Estreitinho do Rio Uruguai), ao locar o sub-trecho na área de transposição da Serra do Espigão, em direção Sul às nascentes do Rio do Peixe, localizadas próximas aos Campos de São Roque (hoje cidade de Calmon), contataram esta comunidade no topo da serra, bem onde planejaram construir uma parada-de-trem, ou seja, uma estação ferroviária, esta que, inaugurada em 1909, foi denominada de “Estação São João” (berço do centro da hoje cidade de Matos Costa). Este “ajuntamento”, então tido como de pobres, negros, ex-escravos, já estava bastante diluído, em função da miscigenação de seus membros com uma comunidade indígena vizinha, situada nas margens do Rio do Pardos, distante poucos quilômetros. Parte dos índios botocudos, do grupo Xokleng, conhecidos por “bugres”, aldeados no “Toldo do Quati”, misturaram-se com os negros e vieram a ser o primeiro grupo identificado de cafuzos formado em Santa Catarina.
Desta forma, quando da inauguração da Estrada de Ferro, no final do ano de 1910, em São João dos Pobres e no Toldo do Quati residiam negros, índios e cafuzos, em perfeita convivência entre si e, inclusive com famílias caboclas (estas descendentes de mamelucos), que já se espalhavam pelo Contestado. Neste tempo, a região também recebeu outros novos moradores – inclusive negros e mestiços – contingentes de ex-trabalhadores da construção da ferrovia, que, vindo de longe, naquele tempo internaram-se pelo sertão, optando por não regressar a seus lugares de origem, a maioria do Sudeste do país.
A maioria dos negros, originários das alforrias do fazendeiro Carneiro, já não existia mais, quando seus descendentes – os cafuzos – acompanhando os nativos Xokleng, foram levados para mais ao Leste do Estado, descendo a Serra Geral, onde passaram a compor os agrupamentos indígenas do aldeamento reserva indígena do Plate e Alto Vale do Itajaí do Norte, em Ibirama, onde o SPI estabeleceu o Posto Indígena Duque de Caxias (depois Posto Indígena Ibirama), para aldear os Xokleng da Serra Geral e da Serra do Mar. Esta, a verdadeira origem dos conhecidos “cafuzos de Ibirama”. Quando da deflagração da Guerra do Contestado, o povoado de São João dos Pobres foi atacado por um piquete de caboclos (a 6 de setembro de 1914), incendiando-se todas as casas do lugar, com o que os sobreviventes da antiga população, temerosos, bateram em retirada.
A Invernada dos Negros em Campos Novos
Com a abertura das veredas das Missões, o tráfego vertical dos tropeiros de muares e bovinos deslocou-se do eixo da Estrada Real, num primeiro momento para o eixo Cruz Alta-Passo Fundo-Campos Novos-Curitibanos-Rio Negro-Lapa e, depois, para o traçado Passo Fundo-Clevelândia-Guarapuava-Palmeira ou Passo Fundo-Palmas-União da Vitória-Palmeira. No setor Meridional da Região do Contestado, se Curitibanos foi um dos pioneiros pousos de tropeiros na Estrada da Mata, Campos Novos foi um dos primeiros na Vereda das Missões, como está registrado:
Filho de família de fazendeiros em Lages, descendentes de tropeiros que se estabeleceram no Planalto Catarinense no Século XVIII, o cidadão Major Matheus José de Souza e Oliveira veio a se fixar nos Campos Novos como fazendeiro, ali recebendo em sesmaria a propriedade da Fazenda São João ainda antes da vigência da Lei das Terras, imóvel que foi significativamente ampliado em 1875 por compra de área adjacente. Adoentado, em 1877 este fazendeiro lavrou testamento, doando uma parte das suas terras – uma invernada – a escravos e ex-escravos das suas relações.
No final de 1877, em seguida ao falecimento de Matheus José de Souza e Oliveira, foi aberto o testamento e procedeu-se o inventário, concluído por sentença judicial a 18 de dezembro do mesmo ano, resultando na partilha da antiga “Fazenda São João” entre a viúva, como meeira e cessionária do seu sogro, Joaquim Antunes de Oliveira, e os 11 negros ex-escravos. O próprio fazendeiro, neste documento público, afirmava estar doando uma área de campos e matos (uma “invernada”) a escravos aos quais já havia dado alforria, e mais, a outros negros, ainda escravos, que serviam a ele e à sua esposa, estes que vieram a obter a liberdade logo após seu falecimento e, assim, também obtiveram direito à mesma doação.
Ainda na primeira década do Século XX, foi proposta uma ação judicial de divisão da Fazenda São João, para dela ser destacada a área correspondente à “Invernada”. Um acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, de 15 de setembro de 1911, confirmou em parte a sentença proferida por acórdão anterior, estabelecendo uma linha reta como divisa da referida fazenda e as terras legadas aos ex-escravos para separá-las. Já em 1928, os herdeiros dos escravos decidiram realizar partilha do imóvel. Em 1939, realizada a divisão judicial, configurou-se o imóvel não mais como condomínio de herdeiros. A propriedade foi constituída em 33 quinhões, sendo um correspondente à metade da área, que ficou para o advogado em pagamento de honorários, e o restante veio a constituir 32 quinhões, estes titulados separadamente para os grupos familiares de descendentes e sucessores dos quatro ex-escravos. A seguir, a maior parte das glebas for vendida para imigrantes, seguindo os planos de colonização da época.
2. 6 Caboclo-pardo, o homem do Contestado
Por ocasião da Guerra do Contestado, estimamos que 90% da população desta região era formada por caboclos natos e acaboclados e, que a metade desta percentagem devia-se a um tipo especial de caboclo. Este sub-tipo, ou “tipo especial”, que encontramos espalhado pela região ainda no final do Século XX, entre os sobreviventes da Guerra do Contestado e remanescentes dos primeiros povoadores e, agora, com numerosa descendência, apesar da cor da pele igual e, mesmo com traços e complexos culturais idênticos a de todos os outros caboclos regionais, revelou-nos possuir uma condição social inferior e de ter elementos culturais que os outros caboclos não tinham. Uma originalidade, então, ficou evidente e não tivemos dúvidas: estávamos diante do “homem do Contestado”.
Surgiu aos nossos olhos, assim, o “caboclo pardo”, como a mais original de todas as designações para os “homens do Contestado”. Ele reúne todas as características étnico-raciais do “caboclo” nacional e regional, mas vai além por revelar ser possuidor de um bom número de traços e complexos culturais típicos, encontrados no Planalto Catarinense, muitos deles não existentes fora daqui. Escolhemos a expressão “pardo”, pois esta era (e ainda é) a cor da pele do “nosso” caboclo.
No Brasil, não podemos esquecer a presença do negro no processo de mestiçagem, logo após a introdução de escravos africanos. Não só ele, mas variados grupos étnicos se ajustaram, adaptando-se uns aos outros, em todo o território. Os angolas ou congos eram os negros oriundos da África; “crioulos” e “moleques”, por terem nascido no Brasil. Para eles, os brancos nascidos na Metrópole eram chamados “reinóis”; os que nasciam no Brasil eram conhecidos por “mazombos”.
Aos tipos resultantes dos cruzamentos em que entrou o sangue africano, denominaram-se, seqüencialmente: “mulato” (branco e negro), “caboré” (índio e negro), “xibáro” (caboré e negro) e “curibóca” (índio e caboré). “Do ponto de vista intelectual e social, porém, o mais notável tipo mestiço do Negro é o Mulato, como fora o Mameluco entre os mestiços de índio” (MARTINS, [s.d.], p. 130).
Além do branco, do índio e do negro, foi no Século XIX que despontaram no Paraná e nesta parte, hoje catarinense, do Território do Contestado, também os tipos humanos advindos do mulato, do cafuzo e do mameluco, e também do xibaro e do curiboca, genericamente denominados na Antropologia de “caboclo”, que nós classificamos como entre os formadores do “homem do Contestado primitivo”, para diferenciá-lo do “homem do Contestado contemporâneo”, este último surgido após o processo de colonização de terras devolutas por imigrantes egressos de outras colônias sulinas.
Assim, portugueses, luso-brasileiros, castelhanos, negros, índios, mamelucos, mulatos e cafuzos, ao longo do Século XIX, formaram o nosso “homem do Contestado primitivo”. Vermelhos nativos da terra, negros trazidos da África, brancos oriundos de São Paulo, do Paraná e do Rio Grande do Sul, mestiços com a pele cor-de-cuia ou cor-de-pinhão e imigrantes da Europa, constituíam os biotipos no Território do Contestado. É a este “tipo humano” que atribuímos a denominação de “caboclo”, sem nenhuma sombra de dúvida, também com sangue indígena nas veias, seja puro, seja mestiço.
O tipo humano mais original da Região do Contestado é o caboclo surgido como segunda ou terceira geração da miscigenação racial branco-vermelha: filho do curiboca com o mameluco, herdeiro da cultura dos descobridores e da cultura autóctone. Além de preservar traços da cultura indígena, o nosso caboclo pardo mais primitivo era marcado pelos traços das tradições de origem ibérica, do tradicionalismo dos bandeirantes paulistas, do conservadorismo dos curitibanos e do comportamento dos gaúchos dos pampas, com o adicional de ser um especialista em vida selvagem.
Postado por Nilson Thomé às Sábado, Fevereiro 14, 2009
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